O Procurista

“Todas as coisas já foram ditas, mas como ninguém escuta é preciso sempre recomeçar.”
André Gide


O puto de 13 anos, de espartano não tinha nada. Procurava nas pontas dos pés a paixão inflamada e tesuda que julgava apreender dos livros que lia à socapa, compartilhando, agora, o belo leito de uma mulher, como pertencesse a uma seita religiosa que prescrevia o culto das imagens – sentia-se um iconoclasta.

Na rua e nos sonhos a sua prestação era corrigida. Como acontecia com todos, temia a prática adquirida de anos de comunicação usada na masturbação. Os atalhos, porque ele considerava esta mulher um atalho na sua vida, obrigavam-no a reconhecer-se. Pela primeira vez deu conta que poderia ser objecto de aprazer.
Depois de uma plasticidade prolongada o efeito sedutor a que teve acesso fê-lo reiterar-se e simultaneamente abrir um leque de dúvidas: tinha jogado na prática com as partes íntimas do corpo, um prazer que não percebia. A genitalidade do prazer aos 13 anos era um mistério.
- Esta é uma senhora – murmurava – de si para si. Soava muito alto a noite. Melhor dito, o amanhecer.
Pela reabilitação da carnalidade e num elogio de letargia, quando naquelas tardes outonais a vizinha Maria atravessava o pátio descobria-se trancado na “privada” que o servia, e os seus olhos viam com sumptuosidade e volúpia as nádegas que dilatavam as suas pupilas e que lhe faziam esquecer a mulher do Vitorio quando se deslocava da marisqueira do marido, para a taberna ao lado, propriedade da família.
Foi nos treze anos que se estreou na luxúria das masturbações, em que fumava às escondidas, em que começou a alternar os livros dos quadradinhos com leituras consideradas por muitos dos rapazolas de brincadeiras maçudas, adquiridas na Biblioteca Municipal. Sentia-se como o Leonardo di Caprio, o rei do mundo, como era indecentemente feliz?
Quando hoje se desloca àquela localidade, onde teve essa indecência de ser feliz, só fechando os olhos e encostando a orelha à única parede que ainda resiste é que ainda revê o miúdo que foi, a atravessar o pátio e a espreitar no parapeito da janela, a sonhar com a mulher do Vitorio, dona de umas valentes nádegas rupestres, cujo encanto o ajudava a amolecer a existência. Hesitante, sentia-se por vezes dividido entre as da vizinha Maria e as da mulher do Vitorio, achava-as paraísos igualmente celestiais. Acabou por optar, as mais das vezes, pelas excursões que duravam o tempo de atravessar a rua e entrar no café do Vitorio a farejar os chocolates, que ultimamente, à socapa de seu pai, consumia com avidez. Simultaneamente, como diz o ditado popular, de uma cajadada se matam dois coelhos, pousava os olhos naquela que era no momento a sua exclusividade, embora de proporções muito mais volumosas como já tinha constatado ao comparar com a da Playboy, revista que já tinha pelo menos seis meses. A mulher do cínico Vitorio revelava-se-lhe uma coelhinha, não havia chocolate algum que o salvasse.
Sem ser com a ajuda da mão, já iniciado nos mistérios da carne a que a Guida soube mais tarde acentuar com virilidade, naquele quarto a dar para o pátio, sem ter dado ainda conta das varizes da vizinha Maria, o seu estado era de levitação, descobrira o dom de voar.

Sentindo sempre alguma alteridade na sua adolescência, enquanto a maior parte da rapaziada escutava as proezas futebolísticas, as glórias dos seus ídolos que sulcavam a relva, com fervor e admiração, para desgosto dos seus colegas de brincadeira só se embevecia quando escutava, boquiaberto, na rádio as narrativas épicas desse grande açoriano que foi, e ainda é, Vitorino Nemésio. Que delícia! Porque carga de água havia sempre Vitorios num ou de outro lado?

Foi naquela época que deu conta que tinha a paixão pelos livros e o quanto eles o podiam possuir e serem possuídos sem limitações. Sentia-se embriagado, tanto as masturbações intelectuais como as outras preenchiam-no, apesar de alguns surtos de marasmo cíclico – não se pode ter tudo.

Acompanhou-o pela vida fora um expedito e altíssimo ideal que irradiava as suas preces, intervaladas por dramas guerreiros que travava com espírito missionário e que ninguém na sua óptica compreendia. Sentia que tinha o direito de tratar por tu os ultrajes, o garoto de então, numa devoção pedagógica, propunha-se travar uma luta sem quartel, perfidamente secreta.

Algumas senhoras virtuosas e divergentes, esposas honestíssimas de alguns oficiais do exército, aquelas que até as pastilhas elásticas as incomodam, assistiam com uma atenção necrológica aos insultos surpreendentes do puto que anunciava rebeldia, devassidão até. Mas a juntar a tudo isto o puto sempre tivera intervalos educacionais austeros. A tia, irmã do seu pai, educada num colégio de freiras, a que ele vaidosamente assistia quando nalgum casamento fumava um cigarro cheio de estilo, transmitia-lhe conforto maternal. Nas viagens constantes que fazia pelo país, na recolha de pareceres médicos a troco de guloseimas (assinaturas de revistas, perfumes, marroquinaria, e toda a pernefália de necessidades subtis), eram muitas as vezes que com teimosia, insistência, obstinação até, que a via chegar no Wolkswagen juntamente com a sua companheira, colega de trabalho e naquela época mais motorista que qualquer outra realidade, querendo sempre saber se tomava banho e cuidava da higiene oral, perguntavam-lhe das calças, das camisas e davam-lhe algum dinheiro.


Esta personagem (a da tia) acompanhou-lhe sempre a memória, conseguindo à sua maneira preencher-lhe uma parte de si. Fez dela muitas vezes a autora principal da sua vida. Sentados muitas vezes na velha sala confortável de Linda-a-Velha, conversavam horas a fio. Tropeça, ainda hoje, muitas vezes, nessas conversas que o ajudaram a ultrapassar os obstáculos lavrados por uma irrequieta e pouca ortodoxa existência.



Herdou-lhe, sem estar morta, o porte. Apesar das divergências, considerava-a notável. Meticulosa e paciente na sua pompa, sem uma prega nos vestidos ou noutra qualquer indumentária, com uma elegância discreta, mas simultaneamente audaz, atravessa-lhe ainda a sua figura altiva vestida num impecável sobretudo vermelho cujo tecido de boa qualidade, ele que naquela altura nem sabia que existia tal sumptuosidade. Os saltos altos davam-lhe um ar magnífico e pedestal, os seus lenços de seda ao pescoço noticiavam-lhe um trono que proclamava com circunstância, como fosse de direito, além disso cheirava sempre bem, só ela o sabia deixar estupefacto, aromaticamente falando.


As suas cirúrgicas conversas (as da tia) desviaram-no da ruína numa altura em que o que estava a dar era Alcohol Sex Drugs e Rock and Roll. Escolhendo inteligentemente as suas palavras revelava-se à mesa de jantar, sempre preparada cerimoniosamente, uma anfitriã em que o jogo das palavras eloquentes e imbatíveis o predispunham a uma conduta mais recôndita. Comiam-se gestos e palavras com a precisão de um relojoeiro. Não coincidindo nos sentimentos religiosos isso não interferia na amizade. Apesar das apocalípticas ressonâncias de catecismo, os seus olhos afeiçoavam-se ao deslumbramento exterior, era simultaneamente uma mulher aberta a outras singularidades.


Já sabemos que quando se é adolescente entra-se a dar “pancada” em tudo, mas ele só tinha 13 anos e o pai ao contrário de ficar assustado, contemplava com ironia a contestação ao estabelecido, permitindo-lhe introduzir nesses anos verdes ideias pouco ortodoxas. Era dono da sua raiva, da prepotência com que atacava o tédio do sempre mais-do-mesmo.


Olhado com um dedo acusador pelas suas seduções radicais e tão-pouco fáceis, agastava-o a permanência das cartilhas postuladas de cor cinza. Achava-se imbuído de visões incendiárias que entornavam o tempo – os pensamentos e as palavras tinham para ele o mesmo ritmo que o sexo.


Quando observava que os invocadores de religião a todo e qualquer momento, com mais veemência, eram os mais capazes de desconsiderar, em absoluto, o valor da individualidade alheia – irritavam-no. O esforço que faziam para contagiar com as suas profecias a geração que agora começava a navegar nas águas turvas da vida, fazia-os sentir esmagados pela autoridade missal, pelos cenários de imagens invocadas, tantas vezes cruéis que chegavam como monstros nas noites de insónia.


A memória deste sentimento perturbador faz parte de certo «retracto sociológico». Paixões e verdades sobrevivem à custa de selecções feitas, até porque, o que se vê é sempre uma selecção da realidade, ou melhor, da realidade individual.


No seu mundo procurista, porque é isso que conjectura um procurador, poeta pagão e sensual, indagar invoca-lhe a necessidade de produzir e reproduzir constantemente as condições de existência, singulariza o carácter activo da adaptação humana, nessa corrente de confidências em que os olhares indiscretos ampliam os miasmas protagonizados pelo "viajante" que nós somos. É este o legado deste procurador que tem por necessidade a exaltação da voluptuosidade sem castração.


Cultivador de um certo eclectismo, cantor da vida e do prazer, tal como o magnifico Boccaccio, porventura o primeiro admitido nesse universo que era o santuário onde domina a noite, uma vez que o dia tinha outros óculos, dizia eu, nesse paraíso de sombras e luzes veladas o sussurro de desejos confusos atravessava-o. Amigo da boémia, da música e da dança, sim dos bailes! Tanto que quando chegava a altura dos slows todo ele avançava, o tempo parecia suspender-se, um frémito de desejo sacudia-o e dava consigo suado, de língua de fora, satisfeito e tímido a roçar-se nas obsequiosas mamas já muitas vezes etiquetadas da Filomena. Era vê-lo de sorriso e olhinho alcoviteiro a espreitar pelas potentes e amestradas que pelo rasgo da blusa conseguia avaliar. Mais tarde, essa mesma sensação, nas discotecas por detrás da Avenida de Roma ou mesmo no Porão da Nau, agora já com outra experiência, a dureza dessa tenção assolava-o sempre – um ousado.


O puto de então divertia-se e nunca esqueceu, no alto da sua opulência, a rapariguinha de olhar vesgo que o espreitava por cima do gradeamento, da vivenda junto ao pátio, fitava-o.
Sempre lhe apanhou a pseudo indiferença mal disfarçada. Lambendo um gelado junto ao muro regozijado da sua vontade, também ele a fitou algumas vezes, brincando sempre sozinha, até porque a mamã não permitia falatórios ou aproximações com rapazes devassos. A senhora temia as mais perfídias das consequências. Esposa, não mulher, de um oficial da Força Área, diligenciou, sempre, a que ele não se envolvesse com a primogénita. Mãe e filha espiavam os seus actos pecaminosos:
- Quando chupando, às vezes com pavor, um cigarro Ritz furtado ao pai, que de seguida teria que ser combatido com um mastigar de uma ou duas folhas de oliveira para o hálito desaparecer, ou, ainda, as suas vendas ambulantes de livros aos quadradinhos que já estava farto de ler e que lhe proporcionavam algumas idas ao cinema, principalmente se o filme fosse para maiores de dezoito anos.


À medida de dois filmes por semana a sua existência terrena era uma maldade, uma agonia, um calvário para a mãe daquela menina. A pequena, toda ela folhos brancos e cor-de-rosa e já com um ar pesaroso, parecia inteirar-se da iminente catástrofe que seria aquele menino. Olhava-o com aquele ar de actriz preocupada quando a mãe estava presente, mas sorria-lhe clandestinamente pelo canto do olho não vesgo. O puto achava aquilo uma delícia, acabava de beber virilidade que quase se engasgava.


Não sei se gosta de mim – pensava ele – ele pelo menos gostava de provocar a mamã. Nunca soube do que gostava!


Para concluir, a postura de procurista, porque trata-se de um puto ávido de novidades, sequioso de emoções, só podia conjecturar ser um procurador, ecleticamente um poeta pagão e sensual. Por vezes, experimenta-se um fogoso pregador, um celebrante à procura de acólitos, mas acontece que cedo aprendeu a não se intrometer na liberdade e diferença de cada um.


Ditame: Olhando os retratos de criança, não se sinta um estranho. Até porque este puto de que falo ainda caminha pela borda do passeio sem pisar os intervalos das pedras.


Fernando Baleiras

1 comentário:

Anónimo disse...

Gostei de ler. Parabéns!