A Cabra em Cabo Verde

É estranho, foi-me estranho, ali aquela cabra no meio do nada, as ondas a baterem lá longe na praia, ao aproximar-me a cabra deixou de mastigar o cartão e fitou-me com os olhos amarelos e insensíveis com as íris verticais. Pela primeira vez sentia, desde que tinha chegado àquelas ilhas, uma sensação de desconforto transmitida por aquele amarelo daquela criatura.

Só naquela altura é que me lembrava dos dispendiosos aposentos deixados e da não importância de conforto com que nos rodeamos. Lembrava-me da família e do aconchego com que nos fazíamos rodear, bem como de toda a pernefália de objectos a que damos grande apreço e que nos fazem percorrer labirintos de alma, de estado de espírito, que são vistos aos olhos de outros como vincos da nossa personalidade.


De facto tenho objectos a que dou atenção, ou melhor, que me apelam à sua atenção, designadamente os relógios. A mística do tempo deixa-me sempre desconcertado quando reflicto: o que é o tempo? Todo o tempo é uma amostra da infinitude, mas que infinitude é essa? De certeza que o tempo é tudo menos linear. Nesta brevidade terrestre da recta – nascimento e morte – onde fica a sua extinção?

É! O que é o tempo senão percepção? Essa percepção do tempo em Cabo Verde tem uma magia indescritível. Uma ruptura absoluta com o mais-do-mesmo. No sentido antropológico apenas me interessava as quimeras da experiência pelas frestas da cartografia física e mental. Podemos acumular informações sobre experiências, mas nunca as próprias experiências. Vou até onde a memória me deixar. Lugar e distância perderam interesse, detenho-me na intensidade do aqui e agora, do existir e significado, melhor dizendo, examinava o que me rodeava não como utilitário mas como puro esteta, um luxo biológico. Aqui encontrava uma certa peculiaridade no cardápio o que me deixava embevecido. O pincel do artista plástico tinha sido guiado pelo seu temperamento sem reservas e hostilidades características aos comuns dos mortais. Como conciliar tudo isto? Não há contemplação por mais passiva que seja que não tenha o seu contudo estético. Algumas casas, na maior parte delas simples quanto baste, daquela simplicidade que nada tem a ver com elegância, paradoxalmente, associado a esta simplicidade, encontrava sinais de “modernização”[1]. Outras haviam que conservavam aquela velha talha colonialista, era óbvio que estas pessoas desejavam mais conforto do que aquele que auferiam, mas pouco conseguido.


Apercebendo-me de uma pobreza a toda a prova, não deixei de ficar embaraçado. O porte, a dignidade, o esclarecimento, o grau de conhecimentos que constatei ao lidar cara-a-cara com os cabo-verdianos, derrubaram uma quantidade de preconceitos etnocentristas que só no ocidente é que se podem contrair e que para mal dos que nunca saíram do seu perímetro nunca poderão experimentar o que é ser diferente. O que me faz apetecer dizer aquele slogan que para muitos não faz sentido: O direito à diferença!

Gente de sorriso amigável, este nunca abandona o rosto daqueles com que fui me cruzando. Nalguns diálogos onde me detive mais e estou a lembrar-me daquele jovem rapaz, o Zé, que tocava viola de uma maneira que fiquei estupefacto, mas mais estupefacto fiquei quando soube que ele nem sequer tinha viola, aprendeu aos poucos numa viola de um amigo que fazia o favor de lhe emprestar de quando em quando. Pensei, bem! Esta minha estupefacção deve-se ao facto de eu não saber tocar. Apesar de amar a música, sei que sou duro de ouvido, mas também sei que muitos homens que vivem com ela diariamente e que até compõem igualmente o são. Mas o que aqui se tratava era de um rapaz “fora de série”. No nosso colóquio, com aquele sorriso amigável que não lhe abandonava o rosto, reparei que os seus olhos tinham perdido um pouco do seu foco, fazendo com que parecesse ter mergulhado num sonho. Não sei até que ponto aquela conversa me deprimiu, mas devo ter revelado essa sensação para ele se levantar, aproximar-se e dar-me uma palmada suave no ombro. Os seus olhos enrugaram-se de divertimento. Descobri que era quase impossível não lhe devolver o sorriso. Rejeitar o sorriso de uma pessoa agradável é para mim, vil ocidental, absurdo, não seria apenas grosseiro, seria também obsceno.


O que uma cabra nos faz recordar?


[1] A modernização, seja lá o que isso for, aqui neste contexto é para realçar a comparação, por exemplo, quando constato uma casa de estilo suíço, com aqueles grandes telhados em bicos, próprio para países frios, construídas naquilo que é designado Beira Baixa.


Fernando Baleiras

O Procurista

“Todas as coisas já foram ditas, mas como ninguém escuta é preciso sempre recomeçar.”
André Gide


O puto de 13 anos, de espartano não tinha nada. Procurava nas pontas dos pés a paixão inflamada e tesuda que julgava apreender dos livros que lia à socapa, compartilhando, agora, o belo leito de uma mulher, como pertencesse a uma seita religiosa que prescrevia o culto das imagens – sentia-se um iconoclasta.

Na rua e nos sonhos a sua prestação era corrigida. Como acontecia com todos, temia a prática adquirida de anos de comunicação usada na masturbação. Os atalhos, porque ele considerava esta mulher um atalho na sua vida, obrigavam-no a reconhecer-se. Pela primeira vez deu conta que poderia ser objecto de aprazer.
Depois de uma plasticidade prolongada o efeito sedutor a que teve acesso fê-lo reiterar-se e simultaneamente abrir um leque de dúvidas: tinha jogado na prática com as partes íntimas do corpo, um prazer que não percebia. A genitalidade do prazer aos 13 anos era um mistério.
- Esta é uma senhora – murmurava – de si para si. Soava muito alto a noite. Melhor dito, o amanhecer.
Pela reabilitação da carnalidade e num elogio de letargia, quando naquelas tardes outonais a vizinha Maria atravessava o pátio descobria-se trancado na “privada” que o servia, e os seus olhos viam com sumptuosidade e volúpia as nádegas que dilatavam as suas pupilas e que lhe faziam esquecer a mulher do Vitorio quando se deslocava da marisqueira do marido, para a taberna ao lado, propriedade da família.
Foi nos treze anos que se estreou na luxúria das masturbações, em que fumava às escondidas, em que começou a alternar os livros dos quadradinhos com leituras consideradas por muitos dos rapazolas de brincadeiras maçudas, adquiridas na Biblioteca Municipal. Sentia-se como o Leonardo di Caprio, o rei do mundo, como era indecentemente feliz?
Quando hoje se desloca àquela localidade, onde teve essa indecência de ser feliz, só fechando os olhos e encostando a orelha à única parede que ainda resiste é que ainda revê o miúdo que foi, a atravessar o pátio e a espreitar no parapeito da janela, a sonhar com a mulher do Vitorio, dona de umas valentes nádegas rupestres, cujo encanto o ajudava a amolecer a existência. Hesitante, sentia-se por vezes dividido entre as da vizinha Maria e as da mulher do Vitorio, achava-as paraísos igualmente celestiais. Acabou por optar, as mais das vezes, pelas excursões que duravam o tempo de atravessar a rua e entrar no café do Vitorio a farejar os chocolates, que ultimamente, à socapa de seu pai, consumia com avidez. Simultaneamente, como diz o ditado popular, de uma cajadada se matam dois coelhos, pousava os olhos naquela que era no momento a sua exclusividade, embora de proporções muito mais volumosas como já tinha constatado ao comparar com a da Playboy, revista que já tinha pelo menos seis meses. A mulher do cínico Vitorio revelava-se-lhe uma coelhinha, não havia chocolate algum que o salvasse.
Sem ser com a ajuda da mão, já iniciado nos mistérios da carne a que a Guida soube mais tarde acentuar com virilidade, naquele quarto a dar para o pátio, sem ter dado ainda conta das varizes da vizinha Maria, o seu estado era de levitação, descobrira o dom de voar.

Sentindo sempre alguma alteridade na sua adolescência, enquanto a maior parte da rapaziada escutava as proezas futebolísticas, as glórias dos seus ídolos que sulcavam a relva, com fervor e admiração, para desgosto dos seus colegas de brincadeira só se embevecia quando escutava, boquiaberto, na rádio as narrativas épicas desse grande açoriano que foi, e ainda é, Vitorino Nemésio. Que delícia! Porque carga de água havia sempre Vitorios num ou de outro lado?

Foi naquela época que deu conta que tinha a paixão pelos livros e o quanto eles o podiam possuir e serem possuídos sem limitações. Sentia-se embriagado, tanto as masturbações intelectuais como as outras preenchiam-no, apesar de alguns surtos de marasmo cíclico – não se pode ter tudo.

Acompanhou-o pela vida fora um expedito e altíssimo ideal que irradiava as suas preces, intervaladas por dramas guerreiros que travava com espírito missionário e que ninguém na sua óptica compreendia. Sentia que tinha o direito de tratar por tu os ultrajes, o garoto de então, numa devoção pedagógica, propunha-se travar uma luta sem quartel, perfidamente secreta.

Algumas senhoras virtuosas e divergentes, esposas honestíssimas de alguns oficiais do exército, aquelas que até as pastilhas elásticas as incomodam, assistiam com uma atenção necrológica aos insultos surpreendentes do puto que anunciava rebeldia, devassidão até. Mas a juntar a tudo isto o puto sempre tivera intervalos educacionais austeros. A tia, irmã do seu pai, educada num colégio de freiras, a que ele vaidosamente assistia quando nalgum casamento fumava um cigarro cheio de estilo, transmitia-lhe conforto maternal. Nas viagens constantes que fazia pelo país, na recolha de pareceres médicos a troco de guloseimas (assinaturas de revistas, perfumes, marroquinaria, e toda a pernefália de necessidades subtis), eram muitas as vezes que com teimosia, insistência, obstinação até, que a via chegar no Wolkswagen juntamente com a sua companheira, colega de trabalho e naquela época mais motorista que qualquer outra realidade, querendo sempre saber se tomava banho e cuidava da higiene oral, perguntavam-lhe das calças, das camisas e davam-lhe algum dinheiro.


Esta personagem (a da tia) acompanhou-lhe sempre a memória, conseguindo à sua maneira preencher-lhe uma parte de si. Fez dela muitas vezes a autora principal da sua vida. Sentados muitas vezes na velha sala confortável de Linda-a-Velha, conversavam horas a fio. Tropeça, ainda hoje, muitas vezes, nessas conversas que o ajudaram a ultrapassar os obstáculos lavrados por uma irrequieta e pouca ortodoxa existência.



Herdou-lhe, sem estar morta, o porte. Apesar das divergências, considerava-a notável. Meticulosa e paciente na sua pompa, sem uma prega nos vestidos ou noutra qualquer indumentária, com uma elegância discreta, mas simultaneamente audaz, atravessa-lhe ainda a sua figura altiva vestida num impecável sobretudo vermelho cujo tecido de boa qualidade, ele que naquela altura nem sabia que existia tal sumptuosidade. Os saltos altos davam-lhe um ar magnífico e pedestal, os seus lenços de seda ao pescoço noticiavam-lhe um trono que proclamava com circunstância, como fosse de direito, além disso cheirava sempre bem, só ela o sabia deixar estupefacto, aromaticamente falando.


As suas cirúrgicas conversas (as da tia) desviaram-no da ruína numa altura em que o que estava a dar era Alcohol Sex Drugs e Rock and Roll. Escolhendo inteligentemente as suas palavras revelava-se à mesa de jantar, sempre preparada cerimoniosamente, uma anfitriã em que o jogo das palavras eloquentes e imbatíveis o predispunham a uma conduta mais recôndita. Comiam-se gestos e palavras com a precisão de um relojoeiro. Não coincidindo nos sentimentos religiosos isso não interferia na amizade. Apesar das apocalípticas ressonâncias de catecismo, os seus olhos afeiçoavam-se ao deslumbramento exterior, era simultaneamente uma mulher aberta a outras singularidades.


Já sabemos que quando se é adolescente entra-se a dar “pancada” em tudo, mas ele só tinha 13 anos e o pai ao contrário de ficar assustado, contemplava com ironia a contestação ao estabelecido, permitindo-lhe introduzir nesses anos verdes ideias pouco ortodoxas. Era dono da sua raiva, da prepotência com que atacava o tédio do sempre mais-do-mesmo.


Olhado com um dedo acusador pelas suas seduções radicais e tão-pouco fáceis, agastava-o a permanência das cartilhas postuladas de cor cinza. Achava-se imbuído de visões incendiárias que entornavam o tempo – os pensamentos e as palavras tinham para ele o mesmo ritmo que o sexo.


Quando observava que os invocadores de religião a todo e qualquer momento, com mais veemência, eram os mais capazes de desconsiderar, em absoluto, o valor da individualidade alheia – irritavam-no. O esforço que faziam para contagiar com as suas profecias a geração que agora começava a navegar nas águas turvas da vida, fazia-os sentir esmagados pela autoridade missal, pelos cenários de imagens invocadas, tantas vezes cruéis que chegavam como monstros nas noites de insónia.


A memória deste sentimento perturbador faz parte de certo «retracto sociológico». Paixões e verdades sobrevivem à custa de selecções feitas, até porque, o que se vê é sempre uma selecção da realidade, ou melhor, da realidade individual.


No seu mundo procurista, porque é isso que conjectura um procurador, poeta pagão e sensual, indagar invoca-lhe a necessidade de produzir e reproduzir constantemente as condições de existência, singulariza o carácter activo da adaptação humana, nessa corrente de confidências em que os olhares indiscretos ampliam os miasmas protagonizados pelo "viajante" que nós somos. É este o legado deste procurador que tem por necessidade a exaltação da voluptuosidade sem castração.


Cultivador de um certo eclectismo, cantor da vida e do prazer, tal como o magnifico Boccaccio, porventura o primeiro admitido nesse universo que era o santuário onde domina a noite, uma vez que o dia tinha outros óculos, dizia eu, nesse paraíso de sombras e luzes veladas o sussurro de desejos confusos atravessava-o. Amigo da boémia, da música e da dança, sim dos bailes! Tanto que quando chegava a altura dos slows todo ele avançava, o tempo parecia suspender-se, um frémito de desejo sacudia-o e dava consigo suado, de língua de fora, satisfeito e tímido a roçar-se nas obsequiosas mamas já muitas vezes etiquetadas da Filomena. Era vê-lo de sorriso e olhinho alcoviteiro a espreitar pelas potentes e amestradas que pelo rasgo da blusa conseguia avaliar. Mais tarde, essa mesma sensação, nas discotecas por detrás da Avenida de Roma ou mesmo no Porão da Nau, agora já com outra experiência, a dureza dessa tenção assolava-o sempre – um ousado.


O puto de então divertia-se e nunca esqueceu, no alto da sua opulência, a rapariguinha de olhar vesgo que o espreitava por cima do gradeamento, da vivenda junto ao pátio, fitava-o.
Sempre lhe apanhou a pseudo indiferença mal disfarçada. Lambendo um gelado junto ao muro regozijado da sua vontade, também ele a fitou algumas vezes, brincando sempre sozinha, até porque a mamã não permitia falatórios ou aproximações com rapazes devassos. A senhora temia as mais perfídias das consequências. Esposa, não mulher, de um oficial da Força Área, diligenciou, sempre, a que ele não se envolvesse com a primogénita. Mãe e filha espiavam os seus actos pecaminosos:
- Quando chupando, às vezes com pavor, um cigarro Ritz furtado ao pai, que de seguida teria que ser combatido com um mastigar de uma ou duas folhas de oliveira para o hálito desaparecer, ou, ainda, as suas vendas ambulantes de livros aos quadradinhos que já estava farto de ler e que lhe proporcionavam algumas idas ao cinema, principalmente se o filme fosse para maiores de dezoito anos.


À medida de dois filmes por semana a sua existência terrena era uma maldade, uma agonia, um calvário para a mãe daquela menina. A pequena, toda ela folhos brancos e cor-de-rosa e já com um ar pesaroso, parecia inteirar-se da iminente catástrofe que seria aquele menino. Olhava-o com aquele ar de actriz preocupada quando a mãe estava presente, mas sorria-lhe clandestinamente pelo canto do olho não vesgo. O puto achava aquilo uma delícia, acabava de beber virilidade que quase se engasgava.


Não sei se gosta de mim – pensava ele – ele pelo menos gostava de provocar a mamã. Nunca soube do que gostava!


Para concluir, a postura de procurista, porque trata-se de um puto ávido de novidades, sequioso de emoções, só podia conjecturar ser um procurador, ecleticamente um poeta pagão e sensual. Por vezes, experimenta-se um fogoso pregador, um celebrante à procura de acólitos, mas acontece que cedo aprendeu a não se intrometer na liberdade e diferença de cada um.


Ditame: Olhando os retratos de criança, não se sinta um estranho. Até porque este puto de que falo ainda caminha pela borda do passeio sem pisar os intervalos das pedras.


Fernando Baleiras

Cabo-Verde (Lá)

Quisera-te eu esquecer
Nas minhas ideias
Este amor escondido que trago comigo
Deixei perdido o sonho que vivi

O tempo sabe a mar e a saudade
É lembrança que sempre fascina
É reviver em mais um bocado
Esses momentos de estima



Tenho em mim palavras que crescem de saudade e nostalgia, muitas palavras ansiosas. As palavras, a linguagem, serve para exprimir sentimentos, estados de alma, atitudes interiores, um sentido.


Senti Cabo-Verde, foi o amor, a angustia, a ansiedade, o misticismo, a esperança, o Além e o Aquém, foi numa palavra a poesia, um encontro com o mundo imaginado, talvez esse o mais real e portanto o mais apetecido.


Rodeado de mar, seu confidente e motivador de infinitos, esperanças e sonhos, oferecendo o seu horizonte sublime de fascínio e liberdade em troca da sua contemplação – trazendo até nós uma paz divina azul e fresca, uma ternura que nos permite cantar de uma forma muito própria, inovadora e sentida, o amor, a natureza e as contradições do homem – os nossos desejos adormecidos dos dias sempre iguais, vontades metafísicas várias, perdidas algures, nos cantos mais esquecidos e desprezado das ruas, das praças, dos campos, das casas e dos empregos que nos alienam.


Lá, o Sol tão evidente e belo, o azul do céu e do mar de uma tarde física deveras enriquecedora, até para os seres menos atentos a esta poesia, bela e apaixonante.


Eu não sei bem, se para ser compreendido preciso de dar ou não certas explicações prévias… Limito-me a declarar modestamente, que todos eles ou quase todos, brotaram a ternura do fiel amante iluminado. Senti o erotismo desta viagem, o alimento do prazer desejado à muito procurado. Senti a partilha com o Outro – nosso irmão de vida-viagem – o que de mais nobre existe: uma vontade existencialmente doce, campestre, sonhadora, plena de paz, produtiva de esperança e tão cheia de amor.


Percorrer estas ilhas é como beijar a vida a passar, se não sabem entender como poderão delas falar?


Fiquei feliz, e às musas agradecido por me terem proporcionado esta viagem.







RODRIGUES, Fernando – "A Cabo-Verde (Lá)", in HESPÉRIDAS – Revista de Cultura Cabo-Verdiana, nº 2, Outubro de 1993, pp. 16-17.

Brasil - Fortaleza Capital do Ceará - Lagoinha; Cumbuco; Caponga; Morro Branco; Praia das Fontes; Canoa Quebrada

O que encontrei? Um povo hospitaleiro e inspirador à diversão, berço dos maiores comediantes brasileiros, que nos remete para essa arte tão nobre que é fazer rir.

Muito mar e muito sol brilhando com águas sempre mornas. A brisa marinha suaviza a constante temperatura entre os 23 e 30ª C.

Da culinária nem se fala, frutos do mar excelentes, belas lagostas, muito caranguejo, aliás, às quintas-feiras todo o cearense come caranguejo, mas a oferta não se fica por aqui e a carne foi das mais deliciosas que encontrei, com as suas famosas e saborosas picanhas.

Tanto a sua Costa Poente (Lagoinha, Cumbuco) como a sua Costa Nascente (Caponga, Morro Branco, Praia das Fontes, Canoa Quebrada) oferecem praias deslumbrantes diferentes entre si, que se vêem, sentem-se, escutam-se e nos fazem guardar lembranças sui generis. Praias largas, muitas ainda em estado primevo e em geral habitadas por comunidades de pescadores que preservam suas memórias. Coqueirais, mangueirais, falésias de areias coloridas transporta-nos a outro universo de enamoramento. É como estivéssemos apaixonados por uma mulher e todas as outras fossem seres assexuais.


Os superficiais, os simples, que apreciam sumariamente o amor, julgando-o uma relação social grosseira como todas as outras só os posso chamar de ingénuos. Encontrei plateias entre o cheiro das curvas das mulheres nuas e dos mamões sumarentos e doces, dei-me conta do meu infantil entusiasmo como de um menino de um qualquer Sagrado Coração de Maria fugido ao colégio atrás do seu primeiro amor.

Nesse estado de serenidade mas também de desassossego vivi os dias passados naquele lado do Atlântico como dois amantes que estão no limiar da maturidade e que mentirosamente chamam segunda juventude, a separação de uma amante é uma operação atroz. Já demos demasiado de nós, demasiado foi comunicado para podermos readquirir inteira a nossa individualidade. Ao contrário dessa atrocidade encontrei reciprocidade. Posso parecer incoerente! Sim sou incoerente. Até porque é tão estúpido e tão fácil ser coerente. Basta dizer sempre a mesma coisa. A coerência é a cristalização das ideias e isso vai contra a minha higiene mental. Abaixo os sempre coerentes.



Falando de higiene mental, troquei o misantropo pelo vagabundo. Gosto de deambular, alimentar em mim o procurista de novos espaços bafejados pelo tempo. Espaço e tempo é algo retribuído com capacidade despida de subterfúgios, desencontrada das horas onde ninguém tem tempo preocupados que estão a acumular inutilidades. Claro que nem tudo é linear. A permuta está sempre presente. Até porque uma das maiores fontes de riqueza nesta região é o turismo. O excursionista, ou quem tome essa postura, tem de estar atento. Mas estamos marcados pela distância. Afinal somos o diferente, o que vem da Europa, aquele que pode trazer algum conforto. Vivem do auxílio dos forasteiros e no entanto, fazem-no com tranquilidade. Essa calma, essa imperturbabilidade chega-nos a dar ira. Como é que estas criaturas perante tanta necessidade têm uma conduta de apaziguamento?


Eu gosto da liberdade das pessoas, tal não se faz com ciência. Aliás, é um sinal de impotência estar à espera que nos venha da ciência aquilo que devemos procurar na arte. É essa arte sem cinza, sem mágoa, recheada de emergente alegria, grito de comando que escorre como abacaxi aos cantos da boca, que me lava o mecanismo empedrado ocidental. Ali não encontro equações sentimentais complexas a resolver. Até porque a graça das pausas tem o valor musical do silêncio. Lá despimo-nos em música, porque a música é como um sonho que se conta.

Mas nem tudo é cor-de-rosa, por onde tenho andado, há sempre alguém que nos propõe uma ou outra chancela de cuidados reles. E esse alguém é: “o néscio que pensa”. Como em todas as cidades se encontra um MacDonalds, em cada grupo existe um “néscio que pensa”, ou seja, aquele que tem opinião politica formada sobre o mundo, exalta os benefícios do leite e da cerveja, sustenta gravemente que tudo é relativo e que a excepção confirma a regra e, quando alguém emite uma opinião um pouco singular, ele rosna com sarcasmo, reservando-se para na primeira ocasião, desembuchá-la solenemente como sua.



Por isso gostei deste povo simples, sem ser simplório. Hoje que todos se fazem de interessantes, os únicos verdadeiramente interessantes são os que não são. Por isso, a única aristocracia que eu reconheço é a aristocracia da inteligência.


Tudo se pode fingir, mas quem finge por uma atitude de snob ao fim de alguns dias atraiçoa-se. Estou habituado a estar só no meio da multidão, ao revés, nesta região cearense, na mais desoladora das aldeias porque que passei, não se encontra solidão, pois basta conhecer uma só pessoa para vê-la a cada passo a nossos pés. Quando saímos do país e se tem a sorte de ignorar a língua, todos parecem geniais; quando não sabemos o que dizem, queremos pensar ou iludirmo-nos que dizem coisas espirituosas e originais. Mas no dia em que começamos a compreende-los, verifica-se que raciocinam como todos os outros. Só que aqui experimento uma língua que conheço, de sonoridade aprazível, afável, macia, despida de hostilidade, gerúndica, musical e que eu compreendia, talvez o mais compreensível dos idiomas.


Conhecia esta gente tão pouco e, todavia, causavam-me ocultas inquietações; tinha trocado poucas palavras e já parecia conhecê-las de anos, andando em companhia delas através de horizontes fantásticos, numa vida anterior.


Eis que chega o momento mais melancólico. Apanho o avião, na Portela levo com um motorista carrancudo a discutir a merda da corrida com o colega do lado. Num gesto de má criação atira-me com um dos troles para o porta-bagagem e parte uma garrafa que se encontra dentro da mala. Arma-se em inocente e ainda por cima diz que a minha preciosa 150 Yipióca vai deixar o carro a cheirar a cachaça. Contenho-me. Lisboa está chuvosa, o pacote ainda não está completo, em breve o frio fará sentir ainda mais a nostalgia dos trópicos.
Hei-de voltar.


Fernando Baleiras