A Cabra em Cabo Verde

É estranho, foi-me estranho, ali aquela cabra no meio do nada, as ondas a baterem lá longe na praia, ao aproximar-me a cabra deixou de mastigar o cartão e fitou-me com os olhos amarelos e insensíveis com as íris verticais. Pela primeira vez sentia, desde que tinha chegado àquelas ilhas, uma sensação de desconforto transmitida por aquele amarelo daquela criatura.

Só naquela altura é que me lembrava dos dispendiosos aposentos deixados e da não importância de conforto com que nos rodeamos. Lembrava-me da família e do aconchego com que nos fazíamos rodear, bem como de toda a pernefália de objectos a que damos grande apreço e que nos fazem percorrer labirintos de alma, de estado de espírito, que são vistos aos olhos de outros como vincos da nossa personalidade.


De facto tenho objectos a que dou atenção, ou melhor, que me apelam à sua atenção, designadamente os relógios. A mística do tempo deixa-me sempre desconcertado quando reflicto: o que é o tempo? Todo o tempo é uma amostra da infinitude, mas que infinitude é essa? De certeza que o tempo é tudo menos linear. Nesta brevidade terrestre da recta – nascimento e morte – onde fica a sua extinção?

É! O que é o tempo senão percepção? Essa percepção do tempo em Cabo Verde tem uma magia indescritível. Uma ruptura absoluta com o mais-do-mesmo. No sentido antropológico apenas me interessava as quimeras da experiência pelas frestas da cartografia física e mental. Podemos acumular informações sobre experiências, mas nunca as próprias experiências. Vou até onde a memória me deixar. Lugar e distância perderam interesse, detenho-me na intensidade do aqui e agora, do existir e significado, melhor dizendo, examinava o que me rodeava não como utilitário mas como puro esteta, um luxo biológico. Aqui encontrava uma certa peculiaridade no cardápio o que me deixava embevecido. O pincel do artista plástico tinha sido guiado pelo seu temperamento sem reservas e hostilidades características aos comuns dos mortais. Como conciliar tudo isto? Não há contemplação por mais passiva que seja que não tenha o seu contudo estético. Algumas casas, na maior parte delas simples quanto baste, daquela simplicidade que nada tem a ver com elegância, paradoxalmente, associado a esta simplicidade, encontrava sinais de “modernização”[1]. Outras haviam que conservavam aquela velha talha colonialista, era óbvio que estas pessoas desejavam mais conforto do que aquele que auferiam, mas pouco conseguido.


Apercebendo-me de uma pobreza a toda a prova, não deixei de ficar embaraçado. O porte, a dignidade, o esclarecimento, o grau de conhecimentos que constatei ao lidar cara-a-cara com os cabo-verdianos, derrubaram uma quantidade de preconceitos etnocentristas que só no ocidente é que se podem contrair e que para mal dos que nunca saíram do seu perímetro nunca poderão experimentar o que é ser diferente. O que me faz apetecer dizer aquele slogan que para muitos não faz sentido: O direito à diferença!

Gente de sorriso amigável, este nunca abandona o rosto daqueles com que fui me cruzando. Nalguns diálogos onde me detive mais e estou a lembrar-me daquele jovem rapaz, o Zé, que tocava viola de uma maneira que fiquei estupefacto, mas mais estupefacto fiquei quando soube que ele nem sequer tinha viola, aprendeu aos poucos numa viola de um amigo que fazia o favor de lhe emprestar de quando em quando. Pensei, bem! Esta minha estupefacção deve-se ao facto de eu não saber tocar. Apesar de amar a música, sei que sou duro de ouvido, mas também sei que muitos homens que vivem com ela diariamente e que até compõem igualmente o são. Mas o que aqui se tratava era de um rapaz “fora de série”. No nosso colóquio, com aquele sorriso amigável que não lhe abandonava o rosto, reparei que os seus olhos tinham perdido um pouco do seu foco, fazendo com que parecesse ter mergulhado num sonho. Não sei até que ponto aquela conversa me deprimiu, mas devo ter revelado essa sensação para ele se levantar, aproximar-se e dar-me uma palmada suave no ombro. Os seus olhos enrugaram-se de divertimento. Descobri que era quase impossível não lhe devolver o sorriso. Rejeitar o sorriso de uma pessoa agradável é para mim, vil ocidental, absurdo, não seria apenas grosseiro, seria também obsceno.


O que uma cabra nos faz recordar?


[1] A modernização, seja lá o que isso for, aqui neste contexto é para realçar a comparação, por exemplo, quando constato uma casa de estilo suíço, com aqueles grandes telhados em bicos, próprio para países frios, construídas naquilo que é designado Beira Baixa.


Fernando Baleiras