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arrocos
Cada vez que viajo a um lugar onde nunca estive descubro que olho como tivesse sido o primeiro a fazê-lo, é obviamente uma tolice, mas para todos os efeitos para mim foi a primeira vez e não há-de ser a única. Fica aqui ao lado, a uma hora e pouco do aeroporto Humberto Delgado.
Toda
a viagem me põe a refletir! O encanto, o fascínio, a surpresa altera o modo
imediato de pensar. Ou seja, repercutiu-se de modo avassalador, incitando ao
devaneio, como diria Jung: Quem olha para fora, sonha. Quem olha para dentro
desperta.
Como disse
o nosso guia, apesar do pouco que resta do esplendor original, depois da morte
do vizir grande parte do mobiliário e decoração existente foi saqueado, do
palácio ainda se vislumbra a joia que pisamos. O palácio é dominado por uma
decoração riquíssima, típica de Marrocos, sobretudo nas salas onde eram
recebidas as visitas oficiais. Advinha-se o fausto. Pena foi só poder visitar
uma parte. Só é permitido visitar um terço do palácio, pois o resto está
reservado á família real. Deixei-me arrebatar pela explicação do nosso guia e
pelo lugar. No requintado palácio funcionou o harém de Ahmed ben Musa, um homem influente e poderoso, invejado
pelo seu poder e temido pela sua crueldade. Ocupou o cargo de vizir (o posto
mais alto a seguir ao rei) do sultão Abdelaziz nos finais do século XIX. Ahmed
bem Musa tinha 4 esposas e 24 concubinas e muitos filhos. O harém inclui um
vasto pátio decorado com um lago e rodeado dos quartos destinados às concubinas.
Uma joia para os meus olhos.
Dou-me conta de uma nuance a que dou muito apreço, a conservação, a manutenção dos espaços. Marraquexe dado o seu clima tem ausência de humidade o que se revela benéfico na preservação da talha em madeira, do estoque de uma beleza que nos deixa zonzos. Tanta inspiração… tenho em mim um Almada, um Kandinsky que tudo olha e absorve até à exaustão. Admirável Mundo para mim Novo. Estamos num lugar que realmente existe. Como é que eu vil ocidental ainda não tinha visitado este lugar? Não, não é tudo belo e penso na palavra resiliência. Houve momentos menos fáceis.
Fernando Baleiras
Maio de 2017
Nunca
tinha estado em solo marroquino, muitas vezes estive em Ceuta mas nada se
vislumbra como pisar o solo berbere[1].
Estamos em todos os momentos a digerir a catadupa da azáfama que nos chega, e
chega de uma forma avassaladora que chega a perturbar. O diferente desassossega,
e gosto de o sentir. Recordo Malinowski, sinto-me estranho e simultaneamente
integrado, levava em consideração na análise não só a ação, mas também a
representação da ação, o que perpassa por mim leva-me a um universo de
significados. Sinto-me condenado a vaguear para sempre entre duas modalidades
de perceção do mundo. Com efeito a transformação da nossa conceção dos outros
modifica a imagem que temos de nós próprios.
Tinha
pela frente um percurso determinado, turístico, que pensava que me ia doer. A
arte de assim estar não é romantismo! Pensar dói. Mas tudo se foi alterando e
os meus preconceitos foram-se esbatendo. Acabei a amar este banho de
Antropologia urbana.
Entre
outros lugares, Marraquexe leva-nos a uma narrativa indescritível. Cidade
cosmopolita, carregada de história, com um arquitetura única. Não podemos só
vê-la através de imagens, é preciso estar nela, in loco, ouvi-la, cheirá-la, deixar que ela chegue tranquila na sua
azáfama, silenciosa no seu ruído. Sou tocado por todos os sentidos mas a
olfativa é a mais violenta, no sentido em que a intensidade dos cheiros se
sobrepõe. São os cheiros das especiarias, do couro, de tudo e de nada. Verdadeiras
páginas que se soltam e que absorvo com intensidade.
Estamos
no meio da turba, gente, muita gente a circular. Tudo farejo, tudo olho,
sinto-me destreinado. Olhar não é ver, tento adaptar-me, não estou habituado a
esta amálgama de gente. Mas o arrebatamento leva-me a procurar adaptação e
dou-me conta que o corpo é um instrumento cuja morfologia é explorada. Nele se
inscrevem, as vestes, as tatuagens, os ornamentos chamados a intervir no plano
sociológico. Qualquer pessoa destaca logo o antagonismo masculino/feminino.
Temos a tentação de ceder ao constrangimento dos pressupostos mas quero
afastar-me de premissas. Procuro despir-me da minha ocidental veste. Muitas
mulheres em Marraquexe vestem roupa ocidental e sem lenço na cabeça, mas eis
que me chega uma peculiaridade; No meu deambular troco um olhar com uma mulher
toda vestida de preto em que apenas os olhos não estavam tapados. Atrevo-me a
procura-la olhar nos olhos e fico surpreendido! Ela fixa-me o olhar, pára nos
meus olhos uma luz intensa, uns olhos bonitos que me indagam, fico durante
muito tempo com aquele empréstimo, parece que tinha passado uma eternidade. Desconcertado
e simultaneamente embevecido procuro limpar o momento sem o esquecer e contínuo
na minha deambulação, não voltaria a ter outro momento igual.
De
repente sou “acordado”. Somos abordados constantemente quando deambulamos pelos
Souks[2].
Ei… Italiano? Francês? Espanhol? – Tenho um sorriso que me solta - e denuncio a
minha nacionalidade: Português! Não deixo de Rir. Rir encurta esta distância
humana[3], rir
encurta a não comunicação e tornamo-nos mais leves. Oh Português! E segue uma
quantidade de lugares-comum - Cristiano
Ronaldo e alguns ainda mencionam o jogador Luís Figo. Mais um momento para
nos convencerem a comprar qualquer coisa.
A
vida nos Souks repete-se, repete-se …. e
as tendas parecem nunca fechar, exceto para as orações. Embora a repetição
pareça ser infinita sempre descobrimos algo que não tínhamos visto antes. Os
turistas, os não locais, estão a ser sempre abordados até à exaustão para comprarem
alguma coisa. O comércio foi e é uma das principais atividades da cidade de
Marraquexe. No passado era a prata e ouro que se vendia, atualmente é toda a
parnefália dos artigos em pele, latão e vestuário que mais se comercializa para
além das especiarias, dos frutos secos, etc.
As
vezes sentia-me perdido, os Souks são autênticos labirintos, com ruas estreitas
parecendo todas iguais. Mas cedo percebemos que temos que arranjar uma forma,
um bom ponto de partida é a Praça Jemaa El Fna[4].
Basta ter em mente de onde se veio e depois é só voltar para trás. Pedir ajuda
aos locais é complicado, muitos ajudarão sem olhar a recompensa, outros
pedirão dinheiro para o ajudar a encontrar a saída. Aqui tudo serve para
fazer negócio. Se lhe propuserem que o podem levar a lojas melhores tenha
cuidado é porque ganham comissões com isso.
De
vez em quando sentimos a necessidade de fazer uma pausa, tomar uma água, bem
que eu vil ocidental debaixo daquele calor, embora aceitável, recordo-me de
consultar o telemóvel e marcava 34 graus, dizia eu, desejei muitas vezes beber
uma cerveja fresquinha, mas álcool é coisa que temos alguma dificuldade em
obter. Cada vez que queríamos comer ou beber regressávamos à praça Jemaa El Fna
e escolhíamos um dos cafés à volta da praça. Sentávamo-nos, ligamos o Wi-Fi, a tecnologia
está em todo o lado, os telemóveis são máquinas sempres presentes,
simultaneamente podíamos observar o entretenimento interminável desta praça,
encantadores de serpentes, aguadeiros, homens com macacos, acrobatas, leitores
de sina, tatuadoras, músicos, bailarinos travestidos, jogadores de uma espécie
de “vermelhinha”, muita gente, grupos excitados observadores onde a crença
mágica parece estar sempre presente. Jemaa El Fna é única e insubstituível. Temos
que lá estar ver, presenciar, sentir, cheirar. Não é por acaso que esta praça é
considerada pela UNESCO uma obra-prima da herança oral e intangível para a
humanidade.
Em
Marraquexe se quiser não para, temos uma quantidade de lugares para visitar e
muitos com uma plasticidade singular. Entre muito do que podemos ver,
prendeu-me a atenção o Palácio Bahia, ou seja, Palácio da Bela ou da
Brilhante em homenagem a
uma mulher pela qual o vizir tinha a sua preferência.
Dou-me conta de uma nuance a que dou muito apreço, a conservação, a manutenção dos espaços. Marraquexe dado o seu clima tem ausência de humidade o que se revela benéfico na preservação da talha em madeira, do estoque de uma beleza que nos deixa zonzos. Tanta inspiração… tenho em mim um Almada, um Kandinsky que tudo olha e absorve até à exaustão. Admirável Mundo para mim Novo. Estamos num lugar que realmente existe. Como é que eu vil ocidental ainda não tinha visitado este lugar? Não, não é tudo belo e penso na palavra resiliência. Houve momentos menos fáceis.
Depois
de muito tempo dentro de uma carrinha e passando por lugares inóspitos onde de
vez em quando nos deparávamo-nos como algum verde e um pequeno fio de água
chegamos a Ouarzazate, cidade do sul de Marrocos,
apelidada popularmente de "porta do deserto". É o centro
nevrálgico de uma vasta região do sul marroquino, de transição entre as montanhas do Atlas e o deserto do Saara.
Também é um dos locais de Marrocos mais usados como cenário por realizadores de
cinema de todo o mundo e que tivemos a oportunidade de visitar. Aqui se fizerem
grandes filmes como o célebre Lawrence da Arábia, A Jóia do Nilo,
A Múmia, o Gladiador, A Última Tentação de
Cristo, Cleópatra Babel,
Príncipe da Pérsia: As Areias do Tempo e muitos outros.
Além
das paisagens, outro dos grandes atrativos da área é a qualidade da luz, com um
sol brilhante pelo menos durante 300 dias por ano. Saiamos de Ouarzazate e
queríamos ir dormir no deserto. Ao fim
da tarde estamos em cima de um dromedário a iniciar um percurso de todo
singular, uma espécie de pureza inicial, um excesso de sentimentos e de
sensibilidade. Mas também meditei nos quantos perigos encerram estas paragens.
Mal tínhamos chegado ao acampamento e eis que começamos a ver e a ouvir uma
violenta trovoada que me fez lembrar um daqueles momentos do senhor dos anéis.
Tudo parecia vir a desaguar em água, a tenda por momentos parece que vai
desaparecer, tudo indiciava que íamos ter uma noite difícil. Olhava os nossos
anfitriões e não lhe descobria uma postura preocupada, estão acostumados.
Passados sensivelmente 20 minutos tudo fica calmo, um céu esplendoroso, uma lua
cheia e parece que nada se passou. Fantástico. A borrasca tinha desaparecido,
volta a luz cintilante, brilhante, única. Sou desafiado a acompanhar o
espetacular grupo de jovens a subir uma alta duna para contemplar e presenciar
a vista. Estava cansado, uma hora em cima de um dromedário deixou-me extenuado,
deve ser da PDI. Um nada mais de frio e dormi espetacularmente bem, tão bem que
não consegui acordar para ir ver nascer o sol. Pelas fotas dos meus
companheiros de viagem perdi um momento único. Enfim, fica para a próxima.
Andar
no deserto é como navegar, saímos cedo de manhã, mais uma hora de dromedário,
um regresso para fazer, voltar a Ouarzazate, dormir e no dia a seguir voltar a
Marraquexe, mais umas comprinhas pelo caminho. Foi o que fizemos. Neste
regresso a Marraquexe estava no nosso projeto de viagem visitar os jardins
Majorelle. Trata-se de um jardim de um exotismo inigualável que qualquer
artista plástico poderia sonhar. Foi o pintor francês Jacques Majorelle que o
mandou contruir em 1931 bem como a sua vivenda de estilo mourisco e art déco
no palmeiral que tinha adquirido. Aqui instala a sua residência
principal no primeiro andar e transforma o rés de chão num imenso atelier para
ali pintar as suas enormes telas. Apaixonado por botânica, criou o seu jardim
inspirado nos jardins islâmicos, com a luxúria dum jardim tropical.
Regressa a Paris depois de um acidente de automóvel e o lugar fica ao abandono.
Em 1966, durante a primeira estadia em Marraquexe, Yves Saint Laurent, um nome
internacional da moda e Pierre Bergé descobriram o Jardim e ficaram seduzidos
por aquele exuberante oásis. Os novos proprietários decidiram habitar na
vivenda do artista, e empreenderam importantes trabalhos de restauração do
jardim, respeitando as cores que o artista utilizou tantos nas paredes da sua
vivenda como depois no jardim, o azul ultramar/cobalto simultaneamente intenso
e claro. É este azul, que ficou conhecido como o "azul Majorelle". Já o atelier de pintura foi transformado num
museu berbere aberto ao público, no qual está exposta
a coleção de arte de Yves Saint Laurent e de Pierre Bergé. Se existem lugares
mágicos este é certamente um deles.
Aproxima-se
o regresso a casa.
Estamos
quase a descolar e eis que se senta uma mulher na cadeira vazia do lado
direito. Olho de soslaio e vejo um a tiazorra, pelos vistos está mal-humorada,
pensei! Foi um momento desconfortável, a postura dela era no mínimo
desagradável. Olho para a Tila e constato que ambos estávamos incomodados. A
senhora estava tensa, compenetrada na sua divagação, tira a revista de bordo do
espaço que me estava reservado, não pede licença, nada. Esta falta de educação
esteva-me a irritar. Quem se julga ela? Mas eis que troca um sorriso com a Tila
e a “coisa” fica um pouco mais leve. Estava a tentar compenetrar-me no livro
que estava a ler, mas olho para ela e Rio-me. Reparo que a cara fechada tinha
desaparecido que que sorria. Olha para o meu livro e leu o título num castelhano
que eu não conseguia identificar a origem, disse-nos que era Chilena. Achei
piada, afinal a Tia era Verdadeira. Em milésimos de segundos lembro-me de
Iturra, o professor chileno da cadeira de antropologia económica, porque quem
tenho uma admiração profunda. Sou trazido para fora dos meus pensamentos, e
oiço uma comunicação, uma rogativa: estou muito infeliz! Pergunto porquê? Tinha
desaparecido uma mochila com informação importantíssima para ela, os seus
vários cadernos de trabalho. Nesse momento fiquei atónito. A mulher aqui num
desespero e eu a digerir uma “carga negativa” sem justificação. Toquei-lhe no
braço e disse-lhe que de certeza iria ultrapassar tamanho desconsolo,
lamentou-se, dado que estava ali muitas horas de trabalho como jornalista.
Ficamos
a falar e o relato curto do motivo de ali estar deixa-me hoje ainda mais
apreensivo. Débora é este o nome dela, saia do seu país por vários motivos, mas
o mais pesado era o custo de vida no Chile ter aumentado três vezes mais e
simultaneamente ter ficado sem emprego. Os jornalistas há muito tempo que estão
a ser dispensados. Resolveu abandonar o País. Alugou o apartamento e tinha como
destino Barcelona para ir viver com o irmão que estava há muito tempo fora do
seu país. Como nunca tinha estado em Marrocos resolveu ir espreitar. Ficaria
dois dias em Lisboa antes de apanhar o voo para Barcelona.
Fiquei
a desejar que Débora seja tocada com a certeza que a sua memória poderá
proporcionar. Tal e qual como esta crónica, onde sou tocado pela memória. Nada
como esta capacidade do nos exprimirmos por emoções.
Quero
voltar.Fernando Baleiras
Maio de 2017
[1]
A
designação Berbere tem origem da palavra 'ber' que significa 'homem'
e da palavra Bere - Bárbaros que significa estrangeiro em latim. Ao longo da
história, os berberes foram influenciados por Fenícios, Romanos e Bizantinos e
por muito tempo foram os responsáveis pelas caravanas que atravessavam o Saara
com especiarias partindo de Marraquexe ate o Egito e o Sudão ou vice e versa. Os
Berberes, também chamados de Imazighen (homens livres) são hoje em
dia formados principalmente por pastores seminómadas, agricultores e
comerciantes. Estão na base da criação da Nação que é hoje Marrocos, de cuja
identidade são um elemento preponderante e determinante.
[2] Mercado tradicional das cidades do norte de África.
[3] Rir, recipiente de
travessuras / És o altar ego da inteligência humana / O real e a ilusão estão juntos
– ri / Ri porque se desenham metáforas / Onde se movem verdades / Ris porque
acusas as realidades indecorosas / Ris das contradições de um modus
vivendis / Ris do quotidiano / Ris porque a personagem cómica te faz rir /
Ris porque sim . in http://baleirasvagapoetica.blogspot.pt/
[4] O nome é normalmente
traduzido e isso é visível em quase todos os guias, como “Assembleia dos
Mortos”. Pois no passado a praça era este o local onde eram executados os
criminosos, cujas cabeças ficavam expostas para servir de exemplo. No entanto
temos também os ditames: a palavra djemaa também significa mesquita,
o nome do local pode ser traduzido como "lugar da mesquita
desaparecida", como referência a uma mesquita que ali existiu.